segunda-feira, 6 de julho de 2009

Deus é Gente (parte 2)


Dando sequência ao tema do post "Deus é Gente", eu proponho um exercício mental, uma especulação com o intuito de salientar as falhas presentes no texto cristão do referido post, partindo-se da premissa de que Deus realmente existe. Vamos lá então...

A concepção de um Deus personificado (a idealização de um Deus à nossa imagem e semelhança), pode levar-nos ao encontro de muitas armadilhas típicas do contexto da tradição religiosa. Para começar, é extremamente comum a associação de Deus com o conceito de bem e sua oposição na forma personificada do diabo com o conceito de mal. Mas a análise um pouco mais detalhada desta visão maniqueísta pode revelar- nos certas concepções falhas e desprovidas de um embasamento mais profundo. Para as filosofias orientais em geral, por exemplo, o bem é considerado como o equilíbrio entre forças opostas ao passo que o mal é comumente encarado como desequlíbrio entre os extremos, tal qual é observado na relação entre os opostos presente na filosofia taoista. Assim, começamos a ver que interpretar os mecanismos da vida através da eterna luta entre bem e mal é uma atitude bastante simplista.

Se considerarmos a idéia de que Lúcifer foi um anjo caído que se rebelou contra Deus, constituindo a partir daí a síntese de todo o mal somos obrigados a aceitar que o Criador desconhecia por completo as intenções de sua obra, sendo portanto limitado e falho. Neste caso, Deus seria ignorante e alienado pois desconheceria a sequência de atitudes tomadas pela sua criação insubordinada, demonstrando a evidente fraqueza da força criadora além de um débil poder de planejamento e previsão. Por conseguinte, Deus não poderia ser onipotente, onipresente e onisciente, sendo apenas uma divindade irresponsável num eterno processo de tentativa e erro para poder aprender através da observação da imperfeição de sua própria obra. Dentro desta abordagem, Deus atuaria sobre a criação efetuando “remendos” à medida que fosse verificando as falhas cometidas no desenrolar da vida prática. Contudo, se pensarmos que Deus é realmente onipotente, onipresente e onisciente, tal poder deve necessariamente englobar tudo o que existe, sendo ao mesmo tempo a síntese do bem e do mal. Acreditar no mal como sendo uma fatalidade cósmica apartada do próprio Criador constitui uma mentalidade ingênua e parcial, uma vez que desconsidera automaticamente que Deus seria a origem de absolutamente tudo. Bem e mal deveriam representar necessariamente os dois lados de uma mesma moeda, sendo inútil perpetuar o conflito entre as aparentes oposições.

Mas se fizermos um pequeno esforço, logo veremos que pensar na vida em termos de bem e mal continua a ser uma atitude simplista, mesmo no caso de considerarmos tal dicotomia como eventos oriundos de uma mesma força criadora. Seria mais sensato especular sobre a existência de uma ignorância absoluta e de uma sabedoria absoluta em uma escala evolutiva hipotética. A concepção de mal seria então substituída pela idéia de ignorância, ao passo que o bem seria substituído pela idéia de sabedoria. Deste modo, ainda teríamos uma relação entre opostos mas de uma forma muito mais realista pois passaríamos a encarar nossa caminhada como um processo de evolução e aprendizado constantes, ao longo do qual o ponto de partida seria a ignorância absoluta, o ponto de chegada seria a sabedoria absoluta e entre os dois extremos haveria uma infinidade de diferentes níveis tão amplos quanto o próprio universo. A ignorância estaria relacionada com o básico, o rudimentar, o primitivo (aqui, na acepção mais negativa da palavra), ou seja, a ação e/ou reação simplista, egoísta, limitada, alienada e destrutiva frente à vida. A sabedoria, por sua vez, estaria relacionada com o aprendizado, o conhecimento e a complexidade, constituindo a ação e/ou reação de caráter consciente, altruísta, construtiva e abrangente frente à vida. Em termos evolutivos, portanto, ficaria fácil notar que a ignorância levaria à rigidez e à extinção, ao passo que a sabedoria levaria à adaptação e à continuidade. Por este princípio, portanto, não seria possível ser sábio sem ter sido previamente ignorante, caminho este em que todos nós nos encontramos ainda muito mais próximos do início (ignorância) do que do fim (sabedoria), haja visto a humilde e honesta análise do nosso momento enquanto sociedade.

A inflexibilidade como sinal de ignorância permanece escondida em nossas atitudes diárias tais quais a falsa idéia de fraqueza ao reconhecermos nossos próprios erros, a falta de arrependimento em relação às coisas efetuadas no passado e a perspectiva orgulhosa de que uma pessoa de caráter nunca deve mudar os seus pontos de vista. Aliás, sob tais aspectos, é extremamente comum observarmos as pessoas afirmando cheias de confiança coisas do tipo: “eu sou assim mesmo e não vou mudar” ou “quem quiser, que me aceite do jeito que eu sou” e assim por diante. Pois bem, infelizmente tais afirmações são apenas uma desculpa para um comportamento que no fundo as pessoas sabem não ser o mais adequado. Na falta de argumentos realistas a saída mais fácil é dizer “eu sou assim mesmo” e continuar a fazer as coisas do mesmo modo sem qualquer preocupação com a revisão das nossas próprias atitudes. Um comportamento deste tipo é ausente de qualquer senso de responsabilidade e remete-se sempre a uma crença de que a vida não pode ser mudada por diferentes motivos. Além de ser mais cômodo pensar dessa forma, tal comportamento pode estar sendo influenciado por uma crença filosófica ou mesmo religiosa que desconsidera a visão da vida em termos de aprendizagem, mudança e evolução. Tais constatações, dentre infinitas outras, revelam que estamos muito mais próximos da ignorância do que da sabedoria, já que geralmente não estamos interessados em estabelecer uma visão ampla e crítica a respeito de nós mesmos. Por consequência, a falta de revisão de nossos pensamentos e atitudes eliminam a nossa possibilidade de adaptação ao meio, ou seja, a mudança com o intuito de darmos continuidade às nossas vidas pelos nossos próprios meios e não uma desejável mudança instaurada pela misericórdia dos deuses. De qualquer maneira, a concepção envolvendo uma linha evolutiva hipotética entre ignorância e sabedoria absolutas dispensaria o comportamento muito cômodo de atribuir a causa de nossos erros a um poder externo, individualizado e independente de Deus (o diabo ou o mal personificado), o qual seria o total responsável pelas mazelas do mundo. Assim, veríamos que o diabo nada mais é do que o “bode- expiatório” (perdoem-me pelo trocadilho) criado pela mente humana para gerar medo e atrair os crédulos para a salvaguarda da religião, aquela instituição considerada como o único caminho válido para a redenção.

A idéia de bem e mal e a luta entre forças opostas não é uma concepção exclusiva do cânone cristão mas fica evidente que foi no seio do Cristianismo em que tais idéias acabaram ganhando maior notoriedade no mundo ocidental. Na Europa da Idade Média, por exemplo, as religiões tidas como pagãs foram violentamente perseguidas pela Santa Inquisição e como era comum na época o culto aos elementos da natureza (a fauna e a flora) por parte das religiões locais, atribuir a imagem de um bode à idéia de um ser malévolo acabou servindo aos interesses da Igreja de fazer um marketing negativo sobre tais crenças e atrair mais seguidores (vide a figura do Deus grego Pan: metade homem, metade bode). Em pouco tempo, estava consolidada a imagem de que as pessoas envolvidas com tais crenças não passavam de bruxas ou feiticeiros macomunados com Satanás e sua horda de anjos negros. A partir daí, seria progressivamente instaurada a mais bárbara perseguição com o intuito de “limpar” da face da Terra todos os hereges e ímpios perante os olhos do alto clero. E o mundo, desde então, nunca mais foi o mesmo.

A abolição da crença na reencarnação (sim, o Cristianismo primitivo aceitava essa idéia) e a subseqüente criação de um julgamento divino após a morte com o intuito de recompensar ou punir nossos atos foi uma estratégia extremamente conveniente para a Igreja, obrigando os fiéis a aceitarem o mais rápido possível a concepção de que o Cristianismo seria a única tábua de salvação sobre a Terra. Haveria então apenas uma única vida (e não inúmeras experiências de aprendizado) a ser desfrutada de forma condizente com os princípios estabelecidos pela Igreja, pois qualquer outro estilo de vida estaria em desacordo com as leis de Deus, merecendo assim os mais horrendos castigos no macabro reino de Lúcifer. E não demorou muito para a ameaça pela imposição do medo servir aos objetivos propostos, explorando os fiéis que, na maioria dos casos, davam o pouco que tinham para terem os seus lugares reservados ao lado do trono Deus. A ameaça representada pela imagem do inferno passou então a constituir uma temida punição por parte dos fiéis ao mesmo tempo em que era muito conveniente para os interesses da Igreja. Desde então, passamos a herdar a imagem de um Deus que se impõe através do medo e da ameaça, aproveitando a concepção prévia do Deus com características humanas do Velho Testamento para aperfeiçoar todo o sistema de castigos e recompensas através da implementação do Novo Testamento. De todos os sistemas opressores que herdamos do passado, a concepção personificada de Deus que muitos ainda carregam, mesmo de uma forma inconsciente, é um dos males mais difíceis de serem eliminados do pensamento humano.

Abs:
Marcio

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