quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Uma Sociedade de Certezas

Quem nunca foi vítima de um “auto-embuste” ao dizer para alguém que tinha certeza de algo e depois descobrir que estava redondamente enganado a respeito do assunto? Pode ser que uns mais e outros menos mas, de uma forma ou de outra, todo mundo já foi obrigado a encarar suas próprias pisadas de bola e reconhecer, mesmo que apenas internamente, que estava completamente equivocado em relação à alguma coisa. Alguns vão dizer que esse problema ocorre frequentemente, outros vão dizer que talvez estejam 50% do tempo certos e 50% do tempo errados mas, certamente, muitas são as pessoas que acreditam estar quase o tempo todo certas. E são justamente essas as pessoas que mais fazem estragos a si próprias e ao mundo ao seu redor.

Vivemos em uma sociedade condicionada a lidar apenas com a certeza. Ainda em tenra infância, demonstrar dúvidas, dizer que possui uma informação parcial ou ainda não saber a verdade sobre algo é sempre visto como sinal de fraqueza do espírito ou de uma pessoa sem personalidade que vive perambulando sem objetivos na vida. Nossa cultura supervaloriza a certeza e menospreza a dúvida além de estimagtizar o que seria um comportamento de sucesso: geralmente um indivíduo de personalidade forte que traçou objetivos e seguiu atrás daquilo que queria, mesmo que para manter-se no caminho tenha passado por cima das outras pessoas feito um rôlo compressor. Quando erramos, então, sentimo-nos constrangidos, procuramos esconder o erro, jogar para debaixo do tapete, fingir que não fomos nós e, se não tiver jeito, ainda acusamos o outro. Nem parece que somos humanos. Em uma sociedade assim, cheia de “super-humanos que nunca erram”, como eu vou assumir a minha culpa, a minha derradeira parcela de responsabilidade nas pisadas de bola que eu dou? Não vou assumir a culpa mas nem a pau! Exagêro o que eu estou tentando dizer? De jeito nenhum...

As próprias religiões encarregaram-se de culpar alguém pelos nossos erros há milhares de anos atrás, visto que era difícil lidar com o trauma psicológico das dores, sofrimentos e atrocidades que nós, seres humanos, sempre causamos uns aos outros. Além disso, quer uma melhor forma de controlar a mente das pessoas do que através da religião? Para tanto, trataram de criar a personificação do mal, como se a responsabilidade pelos nossos atos pudesse ser transferida para uma entidade além dos limites do reino humano. Com isso, construiu-se a concepção de mal personificado: demônios, seres das trevas, Satã, Satanás, Belzebu, Lúcifer, Diabo, Capeta, Asmodeus, Excomungado, Senhor dos Infernos e outras derivações de múltiplos nomes e aspectos específicos mas que, na totalidade, ficaram incumbidos de serem responsabilizados pelas besteiras cometidas por seres humanos.

E na prática essa invenção secular começou a funcionar da seguinte forma: Pisou na bola? Foi um momento de fraqueza, foi o diabo quem te tentou... Jogou a culpa no outro? Foram os espíritos das trevas que confundiram o seu discernimento... Matou alguém? Foi Satã quem tomou seu corpo e contaminou a sua alma... Deixou de ter fé? São os demônios que se aproveitam de você e enfraquecem as suas certezas...

Pronto! Estava explicado e resolvido todos os problemas, pois além da criação da personificação do mal poderíamos agora levar vantagem e oferecer o antídoto para todas as moléstias: a religião. Não qualquer religião, obviamente... mas sempre a minha. A minha religião ou Igreja é sempre a mais “eficaz” contra o inimigo mais perigoso do homem: o diabo, o "bode-expiatório" convenientemente inventado para levar toda a culpa (vide o post "Deus é Gente (parte 2)" para maiores detalhes).

Nossa incapacidade em lidar com nossos próprios erros continua a ser asssutadora. Vemos isso todos os dias ao sermos atendidos pelo “infalível” call center das operadoras de telefonia celular, quando os atendentes, em último caso, estão sempre certos. No trabalho, acusar o outro é prática mais do que consolidada, pois indivíduos e empresas (as quais são formadas por conjuntos de pessoas) sempre se encarregam de empurrar os problemas oriundos deles próprios para outras empresas ou pessoas. A certeza não tem obrigatoriedade alguma de estar atrelada ao conceito de verdade e, nos noticiários, ela impera absoluta, com destaque especial para o campo da política. No cenário político nacional, a problemática que tento descrever por aqui aparece de forma doentia e amplamente disseminada: ninguém erra, ninguém pisa na bola, ninguém toma as decisões erradas, ninguém deixa de planejar, ninguém leva vantagem, ninguém engana, ninguém rouba... Mesmo com câmeras registrando tudo as pessoas continuam a negar o erro veementemente, passando a acusar o equipamento ou as circunstâncias envolvendo a gravação. Ou seja, como transgressor, moldo a realidade externa de acordo com o meu interesse particular mas não assumo que estou errado. O universo pode estar errado mas eu não! Impressionante! Nunca vi tantos “super-humanos” trabalhando em um único campo de atuação. É por isso que a política brasileira representa com bastante maestria o orgulho nacional e um exemplo a ser seguido para o restante mundo!

Existe uma atitude mais bonita, mais grandiosa e de humanismo mais transcendental do que uma pessoa admitir que pisou na bola? Que se equivocou? Fez um julgamento falho? Cometeu um deslize? Meteu os pés pelas mãos? E isso parece ser algo cada vez mais raro hoje em dia. Mostrar certeza externamente, mesmo que interiormente você seja um mar de dúvidas é o ideal a ser seguido e mantido a todo custo. Ao invés da dúvida ser encarada como oportunidade de revisão, aprendizado e mudança, é encarada como um sério defeito da personalidade. E no pior dos casos, a certeza forjada pode funcionar como um terrível ferramental de controle, pois quanto maior for a sua certeza (ou fé) em relação ao seu dogma, maior será o nível de manipulação que você sofrerá pela ação de padres, sacerdotes, gurus, mestres ou pastores. Você não apenas será levado facilmente ao ponto em que tais autoridades planejaram, mas também será agente de manipulação de outras pessoas.

Dentro desta perspectiva de inversão de valores, onde a dúvida é menosprezada e a certeza exaltada com todas as forças, sabe quando o mundo irá melhorar? Quando eu e você, caro internauta, começarmos a assumir nossa parcela de responsabilidade dentro do cenário humano, o qual dá continuidade à uma sociedade cheia de certezas e, acima de tudo, abarrotada de hipocrisias...

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